quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Milagre Urbano (Continuação)

“Surgindo em frente à entrada da ostentosa sede da religião católica, Deus preferiu uma aparência mais comum, pretendendo evitar um incidente semelhante ao acontecido nos Estados Unidos: transformou-se então num mendigo, de pele escura e cabelos crespos. Como pretendia visitar o líder religioso de maior expressão do planeta, achou que o disfarce seria realmente eficaz para a conquista do seu objetivo”.

“Chegando aos portões do Vaticano foi logo barrado pelos seguranças: - “Non si puó entrare vestita cosí”, soltou o verbo um dos guardas. Abismado, Deus não conseguiu nem contra-argumentar. Porém, um grupo de turistas argentinos percebeu o absurdo e aproximou-se, interferindo na situação. Começou então um bate-boca intenso entre os guardas e os turistas. Troca de insultos, palavrões e muito empurra-empurra fizeram Deus tentar amenizar toda aquela confusão que ali se formara. O tumulto cresceu a tal ponto que Ele foi até empurrado por um dos seguranças. Percebendo a agitação, um membro da igreja decidiu aparecer e acalmar os ânimos, convidando o “mendigo” a entrar na “casa de Deus”.

“Deus, assim, foi conduzido a uma pequena sala para ser ouvido. Enquanto aguardava ser atendido por um funcionário, observou o luxo e o excesso de riqueza do lugar, registrando tudo em sua poderosa mente, sem deixar ninguém perceber. Somente uma hora depois é que foi recebido por uma mulher bastante antipática, que lhe informou só ser possível falar com o Papa dali há um ano. Deus agradeceu e saiu decepcionado”.

“Já fora do luxuoso prédio, Ele sentou num banquinho de praça e pôs-se a pensar, ampliando os registros já realizados. Sua decepção estava estampada no rosto. Mesmo assim, encerrou suas observações e partiu para a terceira e última parada no planeta: o Brasil”.

“Sabendo que o país ao qual ia visitar tinha um povo miscigenado e com fama de alegre e acolhedor, e também desejando evitar um incidente parecido com o vivenciado na entrada do Vaticano, Deus resolveu mudar novamente de aparência: estalando os dedos, estava de terno e gravata e possuía no rosto traços orientais. Num novo estalar de dedos apareceu, uma fração de segundo depois, na Praia de Boa Viagem, em Recife, capital de Pernambuco, centro cultural do Brasil”.

“Caminhando lentamente pelo calçadão, Deus passou a observar o contraste bizarro comum às grandes cidades: prédios luxuosos abrigavam carros do ano e vidas mergulhadas na riqueza, enquanto que na praia mergulhavam no mar cidadãos pobres, sedentos por uma boa e gratuita diversão. Já ciente dos rumos que o seu relatório estava tomando, parou do outro lado da avenida, numa esquina, a fim de ampliar os seus já conclusivos registros mentais”.

“Deus, coitado, não teve tempo nem de se encostar no muro: foi abordado por três bandidos armados, que colocaram um revólver em sua nuca e já foram exigindo dinheiro: - 'Bora, véi! Passa a grana aí! E num brinca não que o negócio é sério!'. Admirado com a falta de limites daquele mundo tão materialista, Ele não teve dúvidas: soltou o braço nos três bandidos e, numa fração de segundos, desapareceu. Os ladrões ficaram desorientados, sem entender como aquele velho homem conseguira escapar do assalto sem deixar nenhum rastro. Um dos ladrões, inclusive, jurou por Deus que nunca mais ia assaltar. Que ironia, não?”.

“Surgindo num parque qualquer, Deus sentou à beira da lagoa e pôs fim ao seu importante relatório. Após concluir suas observações, parou para dar comida aos peixes e admirar a beleza da vida, observando a bonita paisagem que Ele mesmo projetara para aquele lugar. Baseado nos resultados colhidos decidiu fazer uso do seu poder e aparecer, simultaneamente, em todos os países do mundo para deixar uma mensagem moral aos religiosos do planeta”.

“Com isso, Deus arquitetou reuniões “informais” e induziu homens de diferentes religiões a se encontrarem e discutirem os efeitos das suas crenças na Terra, bem como avaliarem os melhores caminhos para se chegar ao Pai. Inserindo-se em cada uma daquelas reuniões, Deus condenou todos os graves desvios da humanidade que presenciara. Ele, assim, deu uma verdadeira lição de moral naqueles que se diziam Seus representantes no planeta e, no entanto, se perdiam nas tentações do dinheiro e do poder e estacionavam nos porões da ignorância”.


                Ao concluir aquela incrível história o velho homem simplesmente desapareceu, deixando naquelas pessoas um sentimento estranho, que misturava dúvida, culpa e esperança. Perplexos, os religiosos dispersaram-se num silêncio absoluto. E, assim, aconteceu mais um inusitado e inesperado milagre urbano...


(Conto publicado no meu primeiro "O Que Importa é o Caminho", 2004)

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