quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Sinto o Vazio em Mim...



Penso no vazio. Imagem oca de mim. O nada vívido. Assim como o nada é. Todo. Cheio. Vazio.

Hoje. 29 de fevereiro. Dia vazio. Quase inexistente. Cheio. Repleto. Assim como todo dia o é.

De imagem em imagem, sou. De hora em hora esse dia é. E assim percorremos o nosso calendário temporal.

Sinto o vazio em mim...

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Milagre Urbano



Uma tarde ensolarada. Um domingo qualquer. Um parque qualquer. Sentado à beira da lagoa, o homem velho, cabelos grisalhos quase brancos, bem vestido e de fisionomia oriental, dava comida aos peixes. Distante da agitação da garotada, o homem concentrava-se na beleza da vida.

Há poucos metros de distância, porém, formou-se um pequeno aglomerado de pessoas. Ao centro, um pastor evangélico com uma bíblia embaixo do braço arrumava cuidadosamente o local. Quatro banquinhos foram colocados em círculo, ficando ao centro das pessoas que ali assistiam. Sentaram os religiosos: um padre católico, um espírita, uma mãe de santo e um judeu. Com seus trajes “de gala”, todos se ajeitavam para iniciar a “informal” reunião.

O velho homem observava de longe o que se transformaria num debate religioso em praça pública. O assunto, polêmico por natureza, era uma discussão sobre o melhor caminho para se chegar a Deus, segundo os preceitos filosóficos que cada um tinha. Enquanto o evangélico se exaltava dizendo ser Jesus a melhor saída, o espírita apontava Kardec como solução. O judeu, por sua vez, colocava a esperança no Torá, enquanto o padre se benzia, rezando o Pai Nosso em voz baixa. A mãe de santo a tudo ouvia, mas em seu colo jogava os búzios para encontrar a melhor resposta.

De explanações convictas o debate passou a ser uma guerra de palavras: o padre acusava o pastor de ignorante; a mãe de santo dizia que com “uns trabalhos” poderia fazer qualquer um mudar de opinião; o espírita não aceitava a acusação de que seus conceitos tinham a pretensão de transformar Kardec no novo Cristo do mundo; e o judeu passou a falar sua língua natal, sem deixar ninguém entender o que dizia. A perturbação sonora era tamanha. Ninguém mais entendia o que o outro falava e as palavras voavam como flechas pontiagudas.

As agressões chegaram a tamanho extremo que o velho oriental, que assistia a tudo passivamente, interveio naquela imensa confusão. Adentrando no círculo, posicionando-se entre todos os religiosos, o velho ordenou silêncio. E assim o silêncio se fez.  Todos, espantados com a repentina interferência do velho, pararam para observar o que o homem tinha pra falar. Dizendo estar cansado de tanta incompreensão e ignorância, contou uma história que parecia responder àquilo tudo que ali era discutido:


“Um dia, Deus, cansado da sua rotina nos céus, resolveu dar um pulinho na Terra para ver como a coisa estava. Teve a divina idéia de fazer um relatório sobre a situação crítica do mundo e, a partir dele, tomar as providências necessárias. Decidiu partir sozinho, naquele exato momento, curioso para saber como o ser humano vinha se comportando. Como Ele não aparecia pessoalmente no planeta há alguns milhares de anos, não custava nada ver de perto o que seus assistentes tanto falavam. E não eram lá coisas muito boas”.

“Preocupado com os boatos espalhados sobre as insanas investidas de um país que queria dominar o mundo, fez dos Estados Unidos o seu primeiro ponto de parada. Apareceu bem no centro de Nova York, celeiro financeiro do mundo. Perplexo com a correria das pessoas atrás de uma fantasia material, Deus caminhou lentamente pelas ruas observando o clima insensível da metrópole e toda aquela poluição. Iniciou uma profunda
observação na vida cotidiana daquelas pessoas e a sede de consumo que nelas existia, percebendo, também, a desigualdade social que ali havia apesar de se tratar de um país rico e poderoso. Sempre por deveras atencioso, Ele registrava todos os detalhes importantes em sua poderosa mente divina”.

“Deus continuava em sua caminhada quando, de repente, alguém gritou aflito: - “Cop! Cop! A terrorist is Here! Help!”. Confundido com um terrorista, devido a sua imensa barba branca, narigão e roupas compridas, Deus notou que três policiais logo partiram em sua direção. Comunicando-se através de rádio com outras viaturas, os policiais iniciaram uma corrida na tentativa de capturá-lo. Percebendo a encrenca em que se metera, Ele só encontrou uma forma de evitar um verdadeiro incidente internacional e intercelestial: sumiu repentinamente, aparecendo logo em seguida nas proximidades da Casa Branca”.

“Momentos depois, todo país estava em alerta máximo contra um possível ataque terrorista. Sem querer interferir ainda mais naquele perturbado cotidiano, Ele resolveu concluir seus registros mentais antes de partir para outro país, dando sequência à viagem”.

“Ao terminar suas observações, Deus percebeu uma pacífica manifestação em frente à sede do governo americano, que a essa altura já estava se desfazendo devido ao alerta antiterrorista. Os manifestantes, já dissipados, protestavam contra a insistência do governo em não respeitar alguns tratados de preservação do meio ambiente. Observando àquilo tudo, Deus achou importante registrar à digna preocupação daquela pequena parcela da população sobre a vida no planeta. O paradoxo lhe pareceu pertinente ao teor da sua missão. Com isso, estalou os dedos e, em frações de segundos, já se encontrava no Vaticano, na Itália, segundo ponto de parada previsto em seu roteiro”.

(Continua...)

Milagre Urbano (Continuação)

“Surgindo em frente à entrada da ostentosa sede da religião católica, Deus preferiu uma aparência mais comum, pretendendo evitar um incidente semelhante ao acontecido nos Estados Unidos: transformou-se então num mendigo, de pele escura e cabelos crespos. Como pretendia visitar o líder religioso de maior expressão do planeta, achou que o disfarce seria realmente eficaz para a conquista do seu objetivo”.

“Chegando aos portões do Vaticano foi logo barrado pelos seguranças: - “Non si puó entrare vestita cosí”, soltou o verbo um dos guardas. Abismado, Deus não conseguiu nem contra-argumentar. Porém, um grupo de turistas argentinos percebeu o absurdo e aproximou-se, interferindo na situação. Começou então um bate-boca intenso entre os guardas e os turistas. Troca de insultos, palavrões e muito empurra-empurra fizeram Deus tentar amenizar toda aquela confusão que ali se formara. O tumulto cresceu a tal ponto que Ele foi até empurrado por um dos seguranças. Percebendo a agitação, um membro da igreja decidiu aparecer e acalmar os ânimos, convidando o “mendigo” a entrar na “casa de Deus”.

“Deus, assim, foi conduzido a uma pequena sala para ser ouvido. Enquanto aguardava ser atendido por um funcionário, observou o luxo e o excesso de riqueza do lugar, registrando tudo em sua poderosa mente, sem deixar ninguém perceber. Somente uma hora depois é que foi recebido por uma mulher bastante antipática, que lhe informou só ser possível falar com o Papa dali há um ano. Deus agradeceu e saiu decepcionado”.

“Já fora do luxuoso prédio, Ele sentou num banquinho de praça e pôs-se a pensar, ampliando os registros já realizados. Sua decepção estava estampada no rosto. Mesmo assim, encerrou suas observações e partiu para a terceira e última parada no planeta: o Brasil”.

“Sabendo que o país ao qual ia visitar tinha um povo miscigenado e com fama de alegre e acolhedor, e também desejando evitar um incidente parecido com o vivenciado na entrada do Vaticano, Deus resolveu mudar novamente de aparência: estalando os dedos, estava de terno e gravata e possuía no rosto traços orientais. Num novo estalar de dedos apareceu, uma fração de segundo depois, na Praia de Boa Viagem, em Recife, capital de Pernambuco, centro cultural do Brasil”.

“Caminhando lentamente pelo calçadão, Deus passou a observar o contraste bizarro comum às grandes cidades: prédios luxuosos abrigavam carros do ano e vidas mergulhadas na riqueza, enquanto que na praia mergulhavam no mar cidadãos pobres, sedentos por uma boa e gratuita diversão. Já ciente dos rumos que o seu relatório estava tomando, parou do outro lado da avenida, numa esquina, a fim de ampliar os seus já conclusivos registros mentais”.

“Deus, coitado, não teve tempo nem de se encostar no muro: foi abordado por três bandidos armados, que colocaram um revólver em sua nuca e já foram exigindo dinheiro: - 'Bora, véi! Passa a grana aí! E num brinca não que o negócio é sério!'. Admirado com a falta de limites daquele mundo tão materialista, Ele não teve dúvidas: soltou o braço nos três bandidos e, numa fração de segundos, desapareceu. Os ladrões ficaram desorientados, sem entender como aquele velho homem conseguira escapar do assalto sem deixar nenhum rastro. Um dos ladrões, inclusive, jurou por Deus que nunca mais ia assaltar. Que ironia, não?”.

“Surgindo num parque qualquer, Deus sentou à beira da lagoa e pôs fim ao seu importante relatório. Após concluir suas observações, parou para dar comida aos peixes e admirar a beleza da vida, observando a bonita paisagem que Ele mesmo projetara para aquele lugar. Baseado nos resultados colhidos decidiu fazer uso do seu poder e aparecer, simultaneamente, em todos os países do mundo para deixar uma mensagem moral aos religiosos do planeta”.

“Com isso, Deus arquitetou reuniões “informais” e induziu homens de diferentes religiões a se encontrarem e discutirem os efeitos das suas crenças na Terra, bem como avaliarem os melhores caminhos para se chegar ao Pai. Inserindo-se em cada uma daquelas reuniões, Deus condenou todos os graves desvios da humanidade que presenciara. Ele, assim, deu uma verdadeira lição de moral naqueles que se diziam Seus representantes no planeta e, no entanto, se perdiam nas tentações do dinheiro e do poder e estacionavam nos porões da ignorância”.


                Ao concluir aquela incrível história o velho homem simplesmente desapareceu, deixando naquelas pessoas um sentimento estranho, que misturava dúvida, culpa e esperança. Perplexos, os religiosos dispersaram-se num silêncio absoluto. E, assim, aconteceu mais um inusitado e inesperado milagre urbano...


(Conto publicado no meu primeiro "O Que Importa é o Caminho", 2004)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Crime na Rua da Consolação


Caía a tarde como folhas,
Pingos d’água como lágrimas,
Corpo ao chão como grão.
Mãos de sangue tremulavam
Como folhas caídas à tarde,
Como lágrimas em queda d’água,
Grão de morte plantado no chão.

Vida tardia, inconsolável.
Tardias algemas, rua, prisão.
Tarde fria, chuva, lágrimas.
De corpo em corpo, plantação...