sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Entre a Vela e a Escuridão

A mente conjeturava. Percebendo-me luz e sombra, matéria e energia, vi-me um tanto iluminado. E não porque me achava maior. Ou melhor. Simplesmente, porque me senti somente eu.

A mente seguiu afoita. De olhos abertos pude ver. De olhos fechados, pensei. Longe de qualquer inquietação externa, segui mergulhado em mim mesmo, acreditando no poder de apenas ser. Eis que, no auge de minhas divagações, a luz deixou-me ao léu. Misturei-me com a sombra da noite, inevitavelmente. Onde está minha luz?

Já não fazia diferença estar de olhos abertos ou fechados. A mente, contudo, não parou. Ela não cessa jamais. O que será ela? Meu verdadeiro eu? Ferramenta que a mim reflete? Que a mim influencia?

Lembrei da morte. Minha visão de fim, refletida na escuridão, contrastou com a idéia de eternidade. O sentido de viver às vezes não faz lá tanto sentido, ainda que não se possa compreender de pronto o desconhecido. Sei quem sou. E isso tem que me bastar para sentir o cheiro sutil da imortalidade. A mente, então, que se contente.

Tateei o vazio e nada consegui enxergar. Com dificuldades, uma vela e uma caixa de fósforos peguei. No escuro, miúdo foco de luz surgiu com a vela acesa. O lume aclarou pequena parte do ambiente e minha visão percebeu as tênues nuanças do local. Luz e sombra agora dividiam comigo o espaço físico da pequena sala, ambos compartilhando-se, fazendo-me atinar quanto à necessidade de conviver comigo mesmo e, mais ainda, de escolher o meu próprio caminho.

A escuridão, assim, dividiu-se em duas. E eu me percebi em dois. Os caminhos se apresentaram. O paradoxo se fez presente...

. . .

OBS.: o texto aqui publicado não faz parte do livro O Rei, a Sombra e a Máscara, mas tem tudo a ver com a temática da obra, que será lançada em novembro próximo. Aguardem...

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Conflito Internético

Seu Ferreira era daqueles idosos alheios à modernidade. Mas, por insistência da filha, dedicou três ‘longos’ meses ao aprendizado da informática, com ênfase em internet.

- Bom: hoje é o último dia de aula do nosso curso de informática da melhor idade. E vocês vão navegar sozinhos pela internet! Escolham e acessem sites em que possam interagir com conteúdos disponíveis na web...

As palavras do professor aguçaram a curiosidade de Seu Ferreira. Clica pra lá e clica pra cá, viu um banner que dizia “Sua Companhia na Internet”.

- Olha... Deve ser um daqueles sites em que se conversa com outra pessoa em qualquer parte do planeta. Vou entrar...

DILIÇA diz: oi

FERREIRA diz: Olá! Seu nome é ‘Diliça’ mesmo ou é somente um apelido?

DILIÇA diz: eh meu nic

FERREIRA diz: Nic? Seu nome é Diliça ou Nic?

DILIÇA diz: ?

DILIÇA diz: d q eh q vc ta afim?

FERREIRA diz: Afim? Como? Afinidade com o que?

DILIÇA diz: oh sou tipo samurai atako p cima e p baxo

FERREIRA diz: Você é de que país? Japão? Porque não estou entendendo direito o que você quer dizer, senhorita...

DILIÇA diz: brazuka msm

FERREIRA diz: O que?

DILIÇA diz: ?

FERREIRA diz: Hã?

Após uma breve pausa sem resposta, Seu Ferreira continuou.

FERREIRA diz: Sou novato por aqui. Qual o seu melhor passatempo aqui?

DILIÇA diz: faço tudo q vc pidí

DILIÇA diz: oq vc kizé

DILIÇA diz: me chamã di enssaciavel

FERREIRA diz: A senhorita é de onde mesmo?

DILIÇA diz: mi da teu cel

DILIÇA diz: ligo daki agora

FERREIRA diz: Acho que a senhorita é japonesa mesmo, pois não estou entendendo direito o que você me escreve...

Novo hiato entre as partes.

DILIÇA diz: aloww

FERREIRA diz: A senhorita ainda está aqui?

DILIÇA diz: q fofo

DILIÇA diz: nigen mi chama assim

DILIÇA diz: vmo saí vmo

FERREIRA diz: Olha, eu bem que gostaria de conversar com você aqui pelo computador, mas a senhorita está me deixando confuso. Não estou entendendo direito...

DILIÇA diz: ótimo eh melhor ao vivo msm

DILIÇA diz: olha tenho corpo depilado e sou kbç

DILIÇA diz: e sou gay total. posso ser ativo ou passivo

FERREIRA diz: Como é?

DILIÇA diz: si ñ come vai si arepender amor. e cobro barato

Após um novo e revelador hiato, Seu Ferreira enfim entendeu o que ali se passava.

FERREIRA diz: Pederasta dos infernos! E ainda é ignorante... Vai aprender a escrever, peste!

DILIÇA diz: groço !!!!

DILIÇA diz: entra aki e dpois amarela

DILIÇA diz: bixa irustida...

Sem saber o que mais escrever – e emputecido! –, Seu Ferreira meteu o dedo no estabilizador e desligou a máquina sem nenhuma cerimônia. Seu gesto abrupto, evidentemente, chamou a atenção do professor.

- Seu Ferreira? O que foi que houve?

Ignorando as palavras do homem, o idoso levantou enfezado e extravasou:

- Pederasta burro dos infernos! Nunca mais pego nesse troço! Quero saber dessa porcaria de internet mais não!!!

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Pão, Mortadela e uma Noite Insípida

Passava das dezenove horas quando Antônia se despediu da família. Solteira, estudante de pedagogia e estagiária numa creche pública, ela deixou a residência com destino à parada de ônibus, buscando a condução que a levaria para a faculdade.

Nesse mesmo horário, Tayane já se encontrava na escola em que lecionava. Casada, mãe de duas filhas e com 12 anos de profissão na rede pública de ensino, ela desafiava a si própria na tentativa educar e socializar jovens alunos dum bairro pobre da periferia do Recife.

Antônia andou por cerca de 50 metros, quando foi abordada por dois elementos numa moto, capacete na cabeça e discurso incisivo: “Passa a bolsa e não corre...” – falou um dos meliantes. Em seus 22 anos de vida, essa foi a primeira vez que ela recebeu voz de assalto, ainda que nenhuma arma lhe fora mostrada. Tensa, entregou o acessório e retornou andando, sentindo um misto de medo e raiva, sensação que refletia a humilhação de ser intimidada e lesada por estranhos. Restava-lhe voltar para casa e tomar as providências necessárias.

Tayane, naquela noite, não deu aula. Apenas três alunos compareceram e ela decidiu, assim, liberá-los. Ociosa, ao invés de voltar para casa, resolveu assumir a biblioteca, suprindo a ausência da responsável pelo setor. A consequente solitude no recinto a pôs num risco inesperado: os três alunos outrora liberados surgiram no local e decidiram fazer zoeira. Firme no propósito de controlar a situação, não percebeu um dos rapazes furtar-lhe a bolsa. Minutos depois da saída dos jovens, Tayane deu o acessório por falta e não conseguiu evitar a sensação de raiva e medo que lhe afetara, reflexo da humilhação de ser lesada pelos próprios alunos. Restava-lhe ligar para o marido e, com ele, tomar as providências necessárias.

Antônia, após extravasar toda sua angústia num choro inevitável, tratou de cancelar os cartões de crédito e bloquear o celular. Recebendo o apoio da família, contou com a ajuda do padrasto e dirigiu-se à Delegacia de Polícia mais próxima a fim de fazer um B.O. (Boletim de Ocorrência). O mesmo aconteceu com Tayane, que contou com o marido para providenciar idênticos procedimentos.

E foi no prédio policial que as histórias de Antônia e Tayane se cruzaram, a estudante e a profissional da educação envolvidas em situações afins, vivenciando um dos produtos mais cruéis da sociedade: a marginalidade. Elas retornaram para suas casas após os respectivos depoimentos sem sequer terem se conhecido – embora astuto tenha sido o destino.


P.S.: Na delegacia, logo após a entrega dos B.O., os policiais decidiram degustar o lanche da noite. O plantão prosseguiu a base de pão e mortadela. Nada mais pertinente numa noite tão insípida...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Perseguição

A perseguição havia começado. Pelo largo corredor do movimentado shopping, a mulher seguia com o coração ávido. Embora entre tantas pessoas estivesse, sentia-se extremamente vulnerável naquele ambiente que sugeria conturbação.

Os passos eram comedidos, sincronizados com o temor interno. Seu olhar buscava refúgio, mas só encontrava gente estressada, crianças a choramingar, vendedores em pleno processo de antropofagia comercial. Assim, desbravar o caos mercadológico, digno de um grande centro de compras, era só o que lhe restava.

As batidas do coração aceleraram. A mulher tentou se esquivar da fatalidade, evitando olhar de frente para o perigo. E persistiu numa andança frágil, passível de erros, fadada ao insucesso. Mergulhada num esforço descomunal para não ser alcançada, decidiu mudar de rumo, acessando novo corredor de lojas. Ainda que tenha encontrado um ambiente mais ameno, não conseguiu livrar-se da sensação de acuamento. Mesmo assim, procurou seguir em frente, demonstrando rara obstinação.

Poucos passos, contudo, foram suficientes para que ela fosse alcançada. Todo esforço cedeu ante um mudo convite exposto numa vitrine: atraída pela cobiça – e pela luxuosa peça de roupa lá exibida –, entregou-se à ânsia de consumo que a perseguia desde a entrada no malfadado shopping. “Maldita hora em que decidi entrar aqui!”, pensou. Mas não deixou de agir: as compras duraram quase duas horas e o cartão de crédito ganhou novas cifras para débito na fatura mensal.

Recém-saída da high society, a mulher ainda haveria de sofrer outras dolorosas perseguições consumistas nesse processo indesejado de imergência social. Quem a salvaria, então?